"Sou do tamanho do que vejo..."


"Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas
frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho de sua
aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por
isso a aldeia é maior que a cidade...
"Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura."

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda
a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela
sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e
sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.
"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus
nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo.
"Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma
segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago
luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer
palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da
matéria vazia.
Mas recolho-me e abrando-me. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica sendo-me a
alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a
cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer."


Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Fonte:
http://www.cfh.ufsc.br/~magno/


Imagem: http://astronomia-algarve.blogspot.com/2007/03/as-estrelas-1.html

Sem comentários: